Por André Garcia
Na linha de frente das pesquisas para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, o agronegócio depende da umidade e do ciclo chuvoso do Cerrado tanto quanto os lençóis freáticos, bacias hidrográficas e rios que nascem ali para correr por todo o Brasil. Embora a maior parte do setor obedeça às normas de conservação impostas pelo Código Florestal, a devastação segue em alta. Então, é preciso ir além.
Nesta semana, quando se comemora o Dia Mundial da Água, o Gigante 163 traça um panorama hídrico da região e aponta caminhos para a sua manutenção, que também significa a manutenção do clima, do ciclo dos rios e da segurança econômica do Brasil. Esse trajeto pode ser guiado por uma agricultura mais inteligente e mais resiliente.
Foi o que explicou à reportagem o membro do Observatório do Código Florestal, Mauro Armelin, ao destacar que, em geral, as leis têm sido atendidas pelos produtores rurais. A questão é que isso, por si só, não tem garantido a redução do desmatamento e a consequente seca do ecossistema.
“Essas normas [do Código Florestal] já são adotadas pela maioria dos produtores. O desmatamento ilegal é uma questão de crime e isso já entra em outra esfera. O fato é que no momento precisamos do Código e de algo a mais. Então o produtor precisa ir além da legislação para manter sua área de produção.”
Um exemplo de como a atual dinâmica não está funcionando vem do Centro-Oeste, região líder na produção agropecuária e onde predomina o bioma. Lá, 94% do território foi atingido pela seca, a maior porcentagem entre as regiões do País. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), esta também é a única região onde estiagem se tornou mais intensa, com aumento excepcional de 1% entre 2023 e 2024.
O resultado foi que, na hora de plantar a soja, na maior parte do Brasil, a umidade era insuficiente. Com receio de não prejudicar o plantio da segunda safra de milho, que vem logo em seguida, os produtores semearam a oleaginosa com pouca umidade no solo, e por isso ela não vingou. Para piorar, os preços também caíram este ano.
Sem tempo
Com um Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado) que escorrega no tópico desmatamento autorizado, o bioma também padece sob a política do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Instituído pelo Código Florestal há mais de uma década, o processo de implementação começou a avançar só em 2023, estando atrasado em muitos estados, segundo o grupo Climate Policy Initiative (CPI).
Entre os estados, há ainda o problema da emissão de licenças. Recentemente, ao comentar os 51 mil hectares de vegetação nativa perdidos no Cerrado somente no mês de janeiro, o geógrafo e diretor-executivo do Instituto Cerrados, Yuri Salmona, afirmou que o dado indica que as secretarias de Meio Ambiente estaduais continuam dando autorização para o desmate com baixos critérios de monitoramento e transparência.
“As ações de combate ao desmatamento, as autorizações de supressão de vegetação, todas as políticas públicas em torno disso ainda estão se recompondo e ainda não estão na escala necessária para poder fazer acontecer [a redução do desmatamento]”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Com relação a uma possível ampliação da área de preservação obrigatória no Cerrado, hoje estabelecida em apenas 20% pelo Código Florestal, Armelin avalia que a possibilidade de aumento na porcentagem até existe, principalmente considerando mudanças em normas estaduais. Contudo, a questão é urgente e não se pode esperar pelo resultado dessa movimentação política.
“A força do agronegócio não vem simplesmente da contribuição que ele dá para o PIB. A conscientização [do setor] vai fazer com que a sociedade sofra menos. Estamos passando por um problema sério que só vai aumentar”, explicou ele, que é engenheiro florestal e diretor executivo da organização Amigos da Terra.
Revertendo o prejuízo
Uma pesquisa da Universidade do Estado do Colorado (EUA) feita em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) mostra que, em decorrência da seca extrema, houve uma perda primária de produtividade de 33% no Cerrado, onde as plantas cresceram menos que em outras regiões. Assim, além de reduzir o desmate, legal ou ilegal, também é preciso investir em restauração para trazer de volta a umidade.
Hoje, duas propostas caminham neste sentido no Senado. A primeira é oProjeto de Lei (PL) 5.462/2019, que propõe uma política de desenvolvimento sustentável da região. A outra é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2023, que a insere na lista de biomas protegidos como patrimônio nacional. Mas, para o produtor que já lida com os prejuízos desta safra, não sobra margem para esperar pela aprovação das matérias.
“A gente precisa conter o desmatamento e começar a ter um conjunto de ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, pensando em uma agricultura muito mais resiliente adaptada e que valoriza os conhecimentos das comunidades tradicionais que convivem com o Cerrado de pé”, conclui Salmona.
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