Nas décadas passadas, o Mato Grosso demonstrou sua vocação para enfrentar obstáculos gigantes. Agora, se vê diante de um grande desafio para seguir em direção ao futuro com a expansão da capacidade de levar alimento à mesa da população mundial. Trata-se das ameaças ao bioma onde o Estado está assentado. Segundo pesquisa desenvolvida por 12 cientistas brasileiros, publicada recentemente na revista “Global Change Biology”, o Cerrado pode entrar em colapso nos próximos 30 anos se o agronegócio seguir em ritmo frenético sem cuidar de sua biodiversidade.
“Estamos falando de linhagens inteiras de vida que vão desaparecer, sem falar de vários insetos que só existem no Cerrado”, afirma Gabriel Hofmann, doutor em ecologia e pós-graduando em geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O grupo de Hofmann estudou como a conversão da vegetação nativa em lavouras está acelerando as mudanças climáticas em um bioma que já viu quase metade de sua área convertida em plantações de soja, milho e algodão e pastagem para gado.
A savana brasileira está hoje muito mais quente e seca do que antes, segundo concluiu o novo artigo a partir da análise das mudanças de temperatura e precipitação que abrangem seis décadas. Aumentos mensais de 2,24°C em média das temperaturas máximas foram observados entre 1961 e 2019, com picos de 4°C no mês de outubro. Se essa tendência persistir, dizem os pesquisadores, a temperatura será 6 °C mais alta em 2050 do que em 1961, afirma a publicação.
Os cientistas explicam que a interferência humana está interrompendo uma estratégia eficiente da natureza. Durante os meses de pouca ou nenhuma chuva, as árvores do Cerrado usam suas raízes profundas para tirar água em aquíferos de até 15 metros abaixo do solo. Isso permite que as plantas continuem fotossintetizando e liberando água na atmosfera por meio da transpiração e evaporação, mesmo na estação seca.
“Na época da seca, os agricultores não plantam nada no Cerrado. Eles deixam o solo descoberto ou (coberto) com matéria orgânica morta , diz Hofmann. “Como não existem plantas para absorver a energia do sol e fazer a fotossíntese, toda essa energia é utilizada para aquecer o ar e a temperatura aumenta.”
Efeito cascata
Esse processo de aquecimento e secagem gera um efeito cascata que pode destruir grande parte da biodiversidade do Cerrado. Plantas menores, que não têm raízes longas, dependem do orvalho como sua única fonte de água na estação seca. O orvalho geralmente se forma à noite, quando as temperaturas mais baixas causam a condensação da umidade atmosférica (após passar para o ar através da transpiração e evaporação de árvores com raízes profundas). Mas, agora, com menos árvores e menos vapor de água no ar, junto a temperaturas diurnas e noturnas mais altas, o orvalho é um fenômeno cada vez mais raro. “Essas plantas vão simplesmente tostar ao sol”, afirma Hofmann.
Os insetos, incluindo abelhas e formigas e aranhas, também dependem muito do orvalho como fonte de água. “Se você tirar os insetos polinizadores, o ecossistema entra em colapso”, conclui Hofmann.
Potencial gigante
O diretor presidente da SLC Agrícola, Aurélio Pavinato, falou do aquecimento global e do aumento da demanda por alimentos no mundo como “os dois principais desafios” do setor em live promovida pela JBS, Nespresso e jornal “Valor Econômico” na quinta-feira, 29.
Se a expansão demográfica seguir no ritmo atual, teremos cerca de 63 milhões de pessoas a mais por ano no mundo nos próximos 30 anos. Esse contingente demandará, segundo os cálculos de Pavinato, 60 milhões de toneladas de grãos a mais todos os anos – hoje o mundo produz 3, 3 bilhões de toneladas de grãos por ano, o equivalente a 423 quilos de grãos per capita.
Nessa conta de números exponenciais, o Brasil será responsável por abastecer 40% dessa expansão na produção de grãos, segundo a FAO.
Quando se fala na capacidade do Cerrado em gerar alimentos, um hectare propicia ao redor de 6 toneladas e meia de grãos, enquanto o mundo produz uma média de 3,6 toneladas por hectare com 924 milhões de hectares de área plantada mundialmente com grãos. “A região do Cerrado brasileiro exerce um papel nacional e internacional de conseguir produzir bastante num mesmo hectare”, reforça Pavinato.
Desafio hídrico
Atualmente, a destruição e fragmentação de habitats são a maior ameaça à integridade do Cerrado: 60% da área total é dedicada à pecuária e 6% a grãos, principalmente a soja. Cerca de 80% do Cerrado já foi modificado pelo homem devido à expansão agrícola, expansão urbana e construção de estradas. Menos de 20% do Cerrado corresponde a áreas em que a vegetação original ainda está em boas condições.
O bioma teve uma conversão de áreas naturais em plantações 2,4 vezes maior que a Amazônia.
Mais da metade de sua área original foi convertida e a crescente demanda por alimentos, no atual modelo de produção, é uma ameaça para ecossistemas que fornecem cerca de 40% da água doce do país e provém habitat para animais e plantas endêmicas e sob risco de extinção.
“Quando olho as áreas de pastagens, e isso é o caminho natural, teríamos em torno 30 milhões de hectares de área que poderão ser convertidos para produção de culturas anuais. Outros 15 milhões de hectares são vegetação nativa e que teriam potencial para produção agropecuária. Na minha visão, o Brasil não precisaria (expandir sobre vegetação nativa). Pode usar a área de pastagem”, acrescenta o produtor.
Ludmila Rattis, pesquisadora do IPAM e do Woodwell Climate Research Center, fez um alerta na live. “O Cerrado é um bioma onde não podemos errar porque não sabemos como recuperá-lo. É onde a produção agrícola não pode quebrar. Mais de 52% da soja vem dele hoje. Não se pode errar porque seria colocar em risco a caixa d’água do planeta”.