Por André Garcia
Na contramão de propostas para libertar a agricultura da dependência das multinacionais de agrotóxicos, Mato Grosso quer ampliar a utilização desses produtos em seu território, reduzindo para 25 metros a distância mínima de aplicação em áreas próximas a povoados, cidades, vilas, mananciais de água e nascentes.
Além de comprometer a saúde humana, o Projeto de Lei nº 1833/2023, em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado (ALMT), coloca em jogo a qualidade das águas, do ar e do solo, comprometendo a viabilidade do próprio agronegócio, setor que teoricamente se beneficiaria com a norma.
No caso do solo, a contaminação afeta as populações de microrganismos benéficos, o que o degrada, diminuindo a produção de nutrientes. Algumas plantas, dependem de uma variedade de microrganismos do solo para transformar nitrogênio atmosférico em nitratos, e muitos herbicidas interrompem esse processo.
“Os resíduos que se espalham durante a aplicação de agrotóxico já atingem lavouras de produtores que não utilizam esses produtos, gerando impactos econômicos para agricultores familiares que serão impactados com essa redução de distanciamento”, disse em entrevista ao Gigante 163, a engenheira agrônoma e mestre em Saúde Pública, Fran Paula.
De acordo com o Atlas dos Agrotóxicos, quase dois terços de todas as terras agrícolas do mundo estão contaminadas com pelo menos um ingrediente ativo de agrotóxicos. Os resíduos também estão associados ao declínio de minhocas ou micorrízicos microbianos e simbióticos – que fornecem nitrogênio às plantas.
Na Europa, testes revelaram que mais de 80% dos 317 solos agrícolas testados continham resíduos de agrotóxicos. Não à toa, o continente tem normas muito mais restritivas para o uso desses produtos e tem adotado medidas para reduzir seu, com uma proposta de reduzir em pelo menos 50% o uso de pesticidas químicos até 2030.
Sobre a contaminação das águas, a professora Márcia Montanari, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), explica que os agrotóxicos atingem águas superficiais e subterrâneas, sendo transportados por longas distâncias, contaminando cursos hídricos e chuvas.
“Precisamos destacar a contaminação das águas de abastecimento, de rios e poços artesianos que abastecem as casas. Com a aprovação do projeto, haverá um aumento dessa contaminação, o que é muito preocupante porque já temos um cenário de águas contaminadas por resíduos tóxicos e metais pesados no estado”, disse.
Riscos para a saúde
Márcia também destaca que os agrotóxicos mais usados em Mato Grosso, o Glifosato 24d, atrazina, acefato corpo piriforme, pertencem a grupos químicos altamente perigosos à saúde, tanto do ponto de vista das intoxicações agudas, quanto do ponto de vista crônico.
“Diversos estudos mostram a relação entre esses agrotóxicos com a as mutagêneses, mutações que podem causar abortos malformações em fetos. Eles também têm relação com alterações genéticas relacionadas ao câncer, problemas endócrinos, doenças neurológicas e psiquiátricas”, afirma ela.
Neste contexto, Fran chama a atenção para a exposição ocupacional, ou seja, a de trabalhadores e trabalhadoras que lidam diariamente com essas substâncias. “Isso implica no adoecimento da população. Não podemos piorar nossos indicadores sanitários, que já são ruins. Hoje temos um dos maiores índices de aborto e má formação do Brasil, por exemplo.”
Benefício para quem?
Para além de todos esses problemas, uma comparação entre o uso de agrotóxicos e a produtividade também faz pensar se o agricultor precisa mesmo de normas que ampliem seu uso. Líder no ranking mundial do uso de agrotóxicos, o Brasil aplica cerca de 719,5 mil toneladas de veneno às suas lavouras anualmente.
O número é maior que o registrado pelos dois principais concorrentes do País no mercado de commodities juntos: Estados Unidos (457 mil toneladas) e China (244 mil toneladas), segundo publicação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) que compilou dados de 2021.
Por outro lado, de acordo com a USDA, os Estados Unidos registraram em 2021 uma safra de mais de 380 milhões de toneladas de milho, 71% a mais que o Brasil (271,2 milhões). Ou seja, eles, que são os maiores produtores globais do cereal, usaram 63% menos agrotóxicos que os brasileiros, terceiros colocados no ranking.
Nomenclatura
Além de reduzir o distanciamento, o Projeto de Lei nº 1833/2023 também propõe a alteração na nomenclatura dos agrotóxicos, que passariam a ser chamados de defensivos agrícolas. Segundo Fran, a mudança vai contra a lei federal Lei 14.785, que foi atualizada recentemente, mantendo “agrotóxico” como nome dos produtos.
“Enquanto vemos que vários países no mundo têm buscado fortalecer os sistemas alimentares mais sustentáveis, principalmente pós-pandemia, que já foi um indicador que este modelo de consumo e exploração desenfreada da natureza está falido, o Brasil infelizmente faz um caminho contrário”, conclui Fran.
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