Nada a ser celebrado neste 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação. Ao contrário, em 2020, o mundo testemunhou um retrocesso sem precedentes em seus esforços de erradicação da fome, como indica o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021, relatório da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
Neste país que é o maior exportador mundial de carne bovina, segundo de grãos e quarto principal produtor de alimentos, as recentes cenas de filas de pessoas atrás de doações de ossos com retalhos de carne são o retrato da luta de uma parcela cada vez maior da população por sobrevivência. É mais um sintoma da volta do país ao Mapa da Fome da FAO, ao qual havia deixado em 2014.
De acordo com o relatório da FAO, cerca de 23,5% da população brasileira está em situação de insegurança alimentar moderada ou severa. “Ou seja, 49,6 milhões de pessoas: 12,1 milhões a mais do que em 2014-2016”, afirma Gustavo Chianca, representante adjunto da FAO no Brasil, ao Gigante 163.
No mundo, a entidade estima que cerca de um décimo da população global – até 811 milhões de pessoas – enfrentou a fome no ano passado.
A pandemia pode ter impulsionado esses índices, mas a verdade é que o relatório da FAO, em edições anteriores, já havia alertado sobre o aumento da insegurança alimentar de milhões de pessoas ao redor do planeta.
E a ironia é que se há fome em números estratosféricos em todo o mundo, também há alimentos sendo descartados na mesma proporção.
Desperdício
A FAO não tem dados específicos do Brasil, mas revela que, globalmente, em 2019, 931 milhões de toneladas de alimentos vendidos para residências, varejo, restaurantes e outros serviços de alimentação foram desperdiçadas. Isso equivale, segundo Chianca, ao peso aproximado de 23 milhões de caminhões de 40 toneladas totalmente carregados.
“Em casa, cada um de nós desperdiça em média 74 quilos de alimentos todos os anos, mais do que o peso de uma pessoa normal”, diz.
Para se ter uma ideia do que isso significa, basta dizer que os alimentos perdidos e desperdiçados no mundo seriam suficientes para alimentar todas as de pessoas que passaram fome em 2020, revela o representante da FAO.
O desperdício de alimentos será um dos principais temas a serem debatidos na próxima Conferência do Clima (COP26), a ser realizada de 31 de outubro a 12 de novembro, na Escócia.
Prejuízos
Todos os envolvidos na cadeia de produção de alimentos têm sua parcela de responsabilidade nesse sombrio contexto.
Segundo a FAO, globalmente, cerca de 14% dos alimentos produzidos desde a pós-colheita até o varejo são perdidos. De acordo com ele, no mundo, são desperdiçados: 8,6% dos cereais e leguminosas produzidos; 21,6% de frutas e hortaliças; 11,9% de carnes e produtos de origem animal; 25,3% de raízes, tubérculos e cultivos oleaginosos; e 10,1% de outros itens.
Os custos desse desperdício são estimados em US$ 1 trilhão por ano, com perdas ambientais de US$ 700 bilhões e prejuízos sociais de US$ 900 bilhões.
Além da questão da segurança alimentar, desperdiçar alimentos tem impacto ambiental negativo, como o mau uso de recursos naturais, como água, ar e solo – sem contar o tempo de trabalho humano.
De acordo com estudos da FAO, a pegada de carbono deixada pela perda e desperdício de alimentos é de 3,3 gigatoneladas de dióxido de carbono (CO2), o que se traduz em 7% das emissões globais de gases de efeito estufa.
O uso de recursos hídricos atribuíveis a alimentos perdidos ou desperdiçados, segundo Chianca, chega a 250 km³, o que representa cerca de 6% da extração total de água no mundo.
“Além disso, 1,4 bilhão de hectares é usado na produção de alimentos perdidos ou desperdiçados, o que equivale a 30% das terras agrícolas do mundo”, afirma.
Saídas
De acordo com Gustavo Chianca, as chaves para diminuir as perdas e desperdícios de alimentos encontram-se “na tomada de decisões com base em informações e dados de qualidade”. Também são medidas necessárias alianças entre as cadeias que compõem o sistema alimentar e a promoção e aprovação de uma lei para reduzir essas perdas.
Para o representante da FAO, seria necessário também investir em um programa público-privado que promova o consumo local, apoie os pequenos produtores e conscientize os produtores e consumidores para hábitos mais sustentáveis, além de elevar a compreensão sobre o seu valor econômico, ambiental, cultural e antropológico.
“Campanhas de conscientização sobre os benefícios da redução do desperdício são importantes aliadas”, diz.
Algumas medidas também podem ser adotadas pelos consumidores, como a valorização de produtores e comércios locais e o consumo de produtos da estação, além de, evidentemente, fazer uma correta conservação dos alimentos para que não estraguem.
Na Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas, realizada em setembro, o governo brasileiro, segundo Chianca, se comprometeu em reduzir as perdas e desperdício. “Acho que esse é um ponto importante para começar uma política efetiva”, diz.
Ele afirma que a FAO apoia os países para melhorar o monitoramento de dados que vão servir de base para políticas públicas mais assertivas; também incentiva soluções tecnológicas que possam apoiar pequenos produtores em sua comercialização, melhorar sua oferta, aumentar a disponibilidade de seus produtos e, por consequência, reduzir as perdas.