Por André Garcia
Segundo maior bioma da América Latina, com uma área de 2 milhões de km2 que abrange quase 24% do território brasileiro, o Cerrado é o elo central entre os outros cinco biomas do País, fazendo fronteira com quatro deles. A região funciona como uma grande caixa d’água: nada menos do que 8 das 12 bacias hidrográficas nacionais brotam ali, fornecendo 40% de toda a água doce do Brasil.
Nesta semana, quando se comemora o Dia Mundial da Água, o Gigante 163 traça um panorama hídrico da região e aponta caminhos para a sua manutenção, o que também significa a manutenção do clima, do ciclo dos rios e da segurança econômica do Brasil. Para começar, mostramos como o avanço do pasto e da agricultura já transformou a savana, ameaçando parte das 131.991 de suas nascentes e reservatórios naturais.
Um estudo realizado pelo diretor-executivo do Instituto Cerrados, Yuri Salmona, em parceria com o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), aponta queda de 15% na vazão dos rios no bioma entre 1985 e 2022. A análise do comportamento de 81 bacias hidrográficas evidencia ainda que o ecossistema pode perder 33,9% dos fluxos de seus rios até 2050, caso o ritmo da exploração agropecuária seja mantido.
“Isso numa perspectiva otimista, porque a gente analisou [os dados] de 85 até 2022 sob uma perspectiva conservadora”, afirmou Yuri à reportagem.
No mesmo sentido, artigo publicado por pesquisadores brasileiros na revista científica Regional Environmental Change, em 2023, evidenciou que as bacias hidrográficas dali estão secando e perdendo a capacidade de abastecer alguns dos principais rios do País, como o Madeira, o Paraná, o Araguaia, o Tocantins, o Xingu e o São Francisco.
De acordo com o levantamento, houve redução nas chuvas em todas as regiões do Cerrado nos últimos 20 anos. Enquanto o acumulado médio geral em 2001 foi de aproximadamente 1.400 milímetros (mm), em 2019 o índice estava em cerca de 1.000 mm. Por sua vez, o índice médio de evapotranspiração, que até 2001 era de pouco mais de 600 mm por ano, subiu para quase 1.000 mm em 2019.
“O Cerrado é provavelmente o bioma que mais foi destruído pela mudança do solo e pela expansão da agricultura. Preservar o que resta do Cerrado é crítico para que a gente possa manter o clima do Brasil e, particularmente, o ciclo hidrológico dos nossos rios”, acrescenta Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física (IF) da USP e membro da equipe do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU.
Floresta invertida
No Cerrado, as raízes das árvores podem chegar a 15 metros de profundidade, levando a água das chuvas até o fundo do solo que, durante o período seco, libera novamente a água. Esse ciclo faz do bioma uma “floresta invertida”. O problema é que na outra ponta dessa floresta a devastação chegou a 7.852km² em 2023, aumento de 43,73% em relação a 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“O desmatamento quebra o ciclo hidrológico e dificulta o provimento de água nos períodos secos, porque essa água, que iria se infiltrar no subsolo profundo e ficar disponível para os rios no período seco, escorre superficialmente quando uma área é desmatada, quando ela tem uma cobertura vegetacional menos densa”, pontuou Salmona.
Isso reduz drasticamente a evapotranspiração, ou seja, o “suor” das árvores, fenômeno que também ajuda a manter alguma umidade mesmo nos meses de seca. Esta equação também considera o aquecimento da Terra, que vem alterando o regime de ventos no Atlântico Sul e espantando a umidade para longe da região. Não à toa, a temporada de chuvas tem demorado mais para chegar.
Somados, estes fatores diminuem a recarga de aquíferos como o Guarani, Bambuí e Urucuia, e a disponibilidade de água nos reservatórios que abastecem o campo e as cidades. Para se ter ideia, a região perdeu 68 mil hectares em sua superfície de água entre 1985 e 2021, conforme dados do MapBiomas.
Zona de sacrifício
Uma das explicações para os números do desmatamento no bioma é que a área de reserva legal nas propriedades, determinada pelo Código Florestal, é de apenas 20%. Ou seja, a maior parte do desmate ali é legal. Para se ter ideia do quanto a proteção é insfuciente, na Amazônia, onde os índices de desmatamento caíram pela metade em 2023, a porcentagem é de 80%, escancarando a fragilidade na proteção do Cerrado, condenado a “zona de sacrifício”.
As diferenças também se mostram na forma como os biomas são tratados pela comunidade internacional. A União Europeia (UE), por exemplo, endureceu as regras sobre a importação de produtos oriundos de áreas de desmatamento. Contudo, a definição florestal adotada por sua nova legislação abrange apenas a região amazônica, deixando 74% do Cerrado desprotegido.
Artaxo, que é dos pesquisadores climáticos mais respeitados do mundo, defende uma ação coordenada entre União, estados e municípios, especialmente considerando a alta quantidade de autorizações de desmatamento concedidas pelos governos estaduais e prefeituras, com base no Código Florestal.
“Políticas diferentes são necessárias, uma vez que há uma maior permissão de desmatamento para esse bioma. O cerrado é um ecossistema absolutamente essencial para a estabilidade climática do nosso país. Além disso, a evaporação do Cerrado mostra um equilíbrio muito importante para o ciclo hidrológico da de toda uma região onde se tem uma produtividade agrícola muito grande”, concluiu.
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